UMA ESPERANÇA Clarice Lispector

 

                                                  https://omensageiro.org.br/paginas/de-esperanca-em-esperanca e https://g1.globo.com/

 

    Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica, que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.
    Houve um grito abafado de um de meus filhos:
    – Uma esperança! e na parede, bem em cima de sua cadeira! Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não poderia ser.
     – Ela quase não tem corpo, queixei-me.
   – Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.
   Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.
    – Ela é burrinha, comentou o menino.
    – Sei disso, respondi um pouco trágica.
    – Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.
    – Sei, é assim mesmo.
    – Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.
    – Sei, continuei mais infeliz ainda.
    Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não se apagasse.
    – Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.
    Andava mesmo devagar – estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.
    Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia “a” aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:
    – É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte…
    – Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com ferocidade.
   – Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros – falei sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da esperança.
    O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.
   Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.
    Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: “e essa agora? que devo fazer?” Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.

                                                           Clarice Lispector, Felicidade Clandestina

 

 



1) O texto fala de esperança, porém a nomeada pelo menino difere da que é citada pela mãe. A qual esperança cada um deles se refere, respectivamente?

a) sentimento e inseto.
b) inseto e sentimento
c) não se diferem. Mãe e filho referem-se ao inseto.
d) Ambos se referem ao sentimento, portanto a afirmativa da questão não está correta.
e) Há uma alternância de referência  no decorrer do texto: ora ambos se referem ao inseto, ora, ao sentimento.

2) Na aparição de uma esperança emerge um mar de diferentes visões. Qual a visão da criança?

a) a da inquirição, procurando respostas para suas angústias.
b) a da indagação, analisando todas as interrogações que a esperança provoca.
c) a da analogia, comparando o sentimento com o inseto.
d) a da curiosidade, querendo entender o pequeno inseto.
e) a do desvelo, buscando compreender os mistérios da alma humana.

3) No decorrer do texto, mãe e filho travam um diálogo cujo tema é a esperança. Partindo dessa afirmação, é correto afirmar que:

a) não ocorre interação entre os falantes, são apenas autorreflexões.
b) ambos se isolam em seus comentários, desconsiderando a interlocução do outro.
c) as reflexões da mãe ignoram as alusões do filho acerca da esperança.
d) as falas do garoto escondem uma crítica ao sentimento.
e) as citações do filho alusivas ao inseto aplicam-se ao sentimento.

4) De que maneira as falas da mãe e do filho se concatenam?

a) a criança analisa as angústias maternas de maneira incisiva.
b) a mãe e a criança fomentam a discussão acerca da esperança defendendo pontos de vista distintos.
c) a criança aponta as características do sentimento indiretamente.
d) a mãe reforça as alusões da criança com exemplos.
e) a criança faz um discursivo empregando eufemismos.

5) Sobre o texto, é correto afirmar:

a) Há momentos no texto em que a narradora não deixa claro para o leitor se está falando da esperança inseto ou da esperança sentimento. Isso dá ao texto um tom reflexivo.
b) Há a personificação da esperança.
c) Apresenta uma autoanálise das ilusões infantis.
d) Faz uma comparação direta entre objetivos e desilusões.
e) Compila todo o sentimento da esperança num único vocábulo: hesitação.

6) A leitura do texto permite inferir que:


a) a presença do inseto esperança desencadeia sentimentos contraditórios na narradora.
b) o filho da personagem narradora fica deslumbrado e, ao mesmo tempo, pessimista diante do inseto,
c) a narradora depara-se, diante do inseto esperança, com seus próprios medos passados.
d) um fato cotidiano leva a narradora a refletir sobre suas escolhas no passado e suas consequências no presente.
e) a surpresa gerada pela presença do inseto é imediatamente substituída pela atitude prática e objetiva na resolução de um problema metaforizado na figura da aranha.

 

7) No texto, há uma sugestão lírica de que a “esperança” é um sentimento

 

a) provisório e desnecessário

b) frustrante e misterioso

c) objetivo e constante

d) instintivo e delicado

e) frágil e previsto

8) “Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: “e essa agora? que devo fazer?” Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.” Assinale o item que apresenta uma das interpretações possíveis acerca dessa passagem.


a) É o relato de mais um acontecimento cotidiano, como outros citadas no texto.
b) É a narrativa das reflexões filosóficas da personagem.
c) É o relato de um episódio envolvendo o inseto que traz à tona a falta de coragem para agir da personagem.
d) É a exposição dos motivos que levaram a mãe a não ter reação diante do pouso da esperança.
e) É a descrição minuciosa de cada ato da mãe ante a esperança.

9) “Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.” De acordo com  o contexto,  esse pensamento da personagem, permite  inferir que: 


a) um episódio caseiro provocou uma reflexão filosófica.
b) a morte da aranha desencadeou um processo de autoquestionamento no filho.
c) o excerto denota a mesclagem entre inseto e sentimento, confundindo o leitor.
d) é um fragmento dúbio, impedindo a quem é feita a referenciação.
e) a oposição de ideias prevalece nessa passagem do texto por meio dos vocábulos corpo e alma.

10) O foco do texto é :

a) a filosofia de vida de cada ser humano.

b) os sonhos de cada um.
c) os receios da alma humana.
d) a subjetividade humana
e) a ausência de sentimentos ante a determinadas situações.

11) " Não uma aranha, mas me parecia "a" aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar." Assinale a alternativa CORRETA sobre a construção do sentido “uma" e “a” dentro o texto.

a) O emprego do artigo definido individualizou o substantivo aranha, o indefinido atribui-lhe um valor semântico demonstrativo.
b) O emprego do artigo indefinido acentuou a exclusividade comportamental do aracnídeo.
c) O emprego do artigo é indiferente pois o sentido do excerto se dá pelo contexto textual.
d) O artigo indefinido atribuiu o sentido de qualquer à aranha, o definido determinou de forma precisa que a aranha era matadora.
e) O emprego do artigo definido ( a aranha) possui valor semântico de algum, o indefinido, de toda aranha.

12) Em “Não uma aranha, mas me parecia “a” aranha.” (l. 28-29), a substituição do artigo indefinido pelo definido gera, como efeito de sentido:

 

a) o conhecimento compartilhado entre a narradora e o leitor em relação à existência da aranha.
b) a simbologia do medo do filho, que reage imediatamente, matando a aranha.
c) a constatação de aquela era aranha era o elemento decisivo na extinção da aranha.
d) a ideia de que a aranha era um animal ausente da vida da narradora e do filho.
e) a sensação de que a aranha era um animal mais perturbador que a aranha

13) Em “Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar." O vocábulo em destaque pode ser substituído , sem alteração de sentido, por:

a) deslocar
b) voar
c) observar
d) plainar
e) voejar

14) No texto, como a esperança – sentimento -  é caracterizada?


a) secreta e inexpressiva
b) oculta e frustrante
c) aparente e utópica
d) calma e artificial
e) silenciosa e muitas vezes ilusória

15) O texto  de Clarice Lispector ancora-se no duplo sentido da palavra esperança, tomada como substantivo ora concreto, ora abstrato. Com base nessa informação, indique a alternativa que aponta, respectivamente, esses sentidos.

a) Autoimagem do indivíduo, comportamento embaraçoso.
b) Expectativa positiva, perfil franzino.
c) Segurança íntima, tipo de inseto.
d) Tipo de gafanhoto, confiança em coisa boa.
e) Sentimento otimista, inseto esverdeado.

16) O texto apresenta o verbete esperança com mais de um sentido. Esse tipo de ocorrência nomeia-se:

a) ambiguidade
b) polissemia
c) polifonia
d) ironia
e) cacofonia

17) “Uma esperança” utiliza alguns recursos literários para causar catarse e aguçar a sensibilidade do leitor. Ao escolher fazer divagações sobre a esperança, uma espécie de inseto, o narrador-personagem evidencia o caráter reflexivo do texto, por meio da:



a) ironia, fazendo ponderações que se aplicam exclusivamente à esperança como inseto.
b) ironia, fazendo ponderações que se aplicam exclusivamente à esperança como um estado emocional.
c) ambiguidade, fazendo ponderações que se aplicam tanto à esperança como inseto quanto como estado emocional.
d) ambiguidade, fazendo ponderações que se aplicam exclusivamente à esperança como um estado emocional
e) ambiguidade, fazendo ponderações que se aplicam exclusivamente à esperança como inseto.


18) Há situações em que o adjetivo muda de sentido caso seja colocado antes ou depois do substantivo. Essa situação ocorre em:

a) esperança verde
b) longas pernas
c) certa hora
d) mundo comível
e) teia invisível

19) No excerto “Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença.” Assinale o item que retoma o vocábulo em destaque:

a) meu

b) senti
c) que
d) tomei
e) sua


20) “Aqui em casa pousou uma esperança.” Dentre as várias acepções do verbo pousar, assinale a que se adequa ao texto:


a) Pôr algo sobre uma superfície.
b) Descer ao chão, após o voo.
c) Passar a noite em; hospedar-se.
d) Parar para descansar.
e) Estabelecer residência; morar.

21)  O texto “Uma esperança” pertence ao seguinte gênero textual:

a) romance
b) novela
c) crônica
d) fábula
e) conto

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GABARITO


1) B

2) D

3) E

4) C

5) A

6) A

7) D

8) C

9) A

10) D

11) D

12) C

13) A

14) E

15) D

16) B

17) C

18) C

19) E

20) B

21) E

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Comentários

  1. Que bom reler essa crônica! Reflexão interessante. Exercícios inteligentes.

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  2. Clarice sempre sensacional.

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