O ANJO DA NOITE Cecília Meireles

 

 


                                                                                                                            https://br.depositphotos.com/stock-photos

            Às dez e meia, o guarda-noturno entra de serviço. Late o cãozinho do portão no primeiro plano; ladra o cão maior do quintal, no segundo plano: de plano em plano, até a floresta, grandes e pequenos cães rosnam, ganem , uivam, na densa escuridão da noite, todos sobressaltados pelo trilar do apito do guarda-noturno .Pelo mesmo motivo, faz-se um hiato no jardim, entre os insetos que ciciavam e sussurravam nas frondes: que novo bicho é esse, que começa a cantar com uma voz que eles julgam conhecer, que se parece com a sua, mas que se eleva, com uma força gigantesca?
            Passo a passo, o guarda-noturno vai subindo a rua. Já não apita: vai caminhando descansadamente, como quem passeia, como quem pensa, como um poeta numa alameda silenciosa, sob árvores em flor. Assim vai andando o guarda-noturno. Se a noite é bem sossegada, pode-se ouvir sua mão sacudir a caixa de fósforos e até adivinhar, com bom ouvido, quantos fósforos estão lá dentro. 
Os cães emudecem. Os insetos recomeçam a ciciar.
            O guarda-noturno olha para as casas, para os edifícios, para os muros e grades, para as janelas e os portões. Uma pequena luz, lá em cima: há várias noites, aquela vaga claridade na janela: é uma pessoa doente? O guarda-noturno caminha com delicadeza, para não assustar, para não acordar ninguém. Lá vão seus passos vagarosos, cadenciados, cosendo a sua sombra com a pedra da calçada.
            Vagos rumores de bondes, de ônibus, os últimos veículos, já sonolentos, que vão e voltam quase vazios. O guarda-noturno, que passa rente às casas, pode ouvir ainda a música de algum rádio, o choro de alguma criança, um resto de conversa, alguma risada. Mas vai andando. A noite é serena, a rua está em paz, o luar põe uma névoa azulada nos jardins, nos terraços, nas fachadas: o guarda-noturno para e 
contempla.
            À noite, o mundo é bonito, como se não houvesse desacordos, aflições, ameaças. Mesmo os doentes parece que são mais felizes: esperam dormir um pouco à suavidade da sombra e do silêncio. Há muitos sonhos em cada casa. É bom ter uma casa, dormir, sonhar. O gato retardatário que volta apressado, com certo ar de culpa, num pulo exato galga o muro e desaparece: ele também tem o seu cantinho para descansar. O mundo podia ser tranquilo. As crianças podiam ser amáveis. No entanto, ele 
mesmo, o guarda-noturno, traz um bom revólver no bolso, para defender uma rua ...
            E se um pequeno rumor chega ao seu ouvido e um vulto parece apontar na esquina, o guarda-noturno torna a trilar longamente, como quem vai soprando um longo colar de contas de vidro. E recomeça a andar, passo a passo, firme e cauteloso, dissipando ladrões e fantasmas. É a hora muito profunda em que os insetos do jardim estão completamente extasiados, ao perfume da gardênia e à brancura da lua. E as pessoas adormecidas sentem, dentro de seus sonhos, que o guarda-noturno está tomando conta da noite, a vagar pelas ruas, anjo sem asas, porém armado.
 

1) A presença do guarda-noturno, quando entra de serviço, altera as vozes da noite. Isto porque o trilar do apito dele:

a) é uma ameaça aos animais.
b) representa uma voz estranha no meio da noite.
c) indica que está na hora de os animais se recolherem.
d) desperta vozes estranhas.
e) só provoca confusão na noite escura.

2) Quando se refere aos cães, a autora usa uma série de verbos diferentes: late, ladra, rosnam, ganem, uivam. Todos esses verbos são empregados:

a) como sinônimos.

b) de maneira totalmente arbitrária.
c) para criar um cenário.
d) como simples recurso do vocabulário.
e) para indicar uma gradação crescente nas vozes dos cães.

3) “Pelo mesmo motivo, faz-se um hiato no jardim.” Isso quer dizer:

a) há um silêncio momentâneo no jardim.

b) todos os animais e insetos desaparecem do jardim.
c) o jardim fica, momentaneamente, mais movimentado.
d) ocorre confusão no jardim.
e) os insetos começam a cantar mais alto.

4) “Que novo bicho é esse...” Com essa passagem, a autora sugere que o guarda-noturno:


a) é desumano.
b) faz parte das vozes da noite.
c) afugenta os insetos.
d) desconhece os hábitos da noite.
e) tem uma força gigantesca.

5) A passagem que parece quebrar o andar cadenciado e lento do guarda-noturno, considerando o contexto do poema.


a) “Passo a passo, o guarda -noturno vai subindo a rua .”
b) “Lá vão seus passos vagarosos...”
c) “... o guarda-noturno torna a trilar longamente...”
d) “E recomeça a andar, passo e passo, firme e cauteloso...”
e) “... vai caminhando descansadamente...”

6) “Os cães emudecem. Os insetos começam a ciciar.” Explique a oposição que ocorre entre esses dois períodos.

7) “Lá vão seus passos vagarosos, cadenciados, cosendo a sua sombra com a pedra na calçada.” Cosendo , no poema, tem o sentido de :

a) costurando

b) cozinhando
c) coincidindo
d) caminhando
e) alinhavando

8) Em “... aquela vaga claridade na janela”, vaga claridade dá a entender que se tratava de uma luz:

a) repentina, que apareceu numa janela.

b) forte, permanentemente acesa.
c) fraca, que se acende de tempos em tempos.
d) tênue, apenas para clarear o ambiente.
e) constante, que estava sempre acesa.

9) “Vagos rumores de bondes, de ônibus, os últimos veículos, já sonolentos, que vão e voltam quase vazios.” Nesse período é atribuída uma característica de um ser ou objeto a outro ser ou objeto que se encontra relacionado a ele. De que ser ou objeto a característica sonolentos foi retirada?

a) bondes

b) ônibus
c) veículos
d) passageiros
e) motoristas

10) Em “...pode ouvir a música de algum rádio, o choro de alguma criança, um resto de conversa, alguma risada.”, nota-se a repetição do pronome algum(a) . Esse fato leva a inferir que:


a) nem todos os sons são bem audíveis à noite.
b) apenas determinados sons chegam até o guarda-noturno.
c) poucos sons ainda se escutam àquela hora da noite.
d) o guarda-noturno não presta atenção aos ruídos que ainda se escutam.
e) todos já se recolheram no momento da passagem do guarda-noturno.

11) Observe esse período do poema:

 “...pode ouvir a música de algum rádio, o choro de alguma criança, um resto de conversa, alguma risada.”.

Algum(a) significa qualquer, mas, se a posição do pronome for alterada, seu significado também será:

“... pode ouvir a música de rádio algum, o choro de criança alguma, um resto de conversa, risada alguma.”

 Nesse caso, algum(a) significa:


a) determinado
b) certo
c) nenhum
d) todo
e) cada
         

12) Assinale a alternativa em que a passagem do texto quebra a serenidade da noite.

a) “... a rua está em paz.”

b) “... o luar põe uma névoa azulada nos jardins...”
c) “... esperam dormir um pouco à suavidade da sombra e do silêncio.”
d) “O gato retardatário que volta apressado...”
e) “... É a hora muito profunda em que os insetos do jardim estão completamente extasiados...”

13)” ...aquela vaga claridade na janela: é uma pessoa doente?” Uma possibilidade para a suposição do guarda-noturno é:

a) doentes nunca dormem à noite, justificando a luz acesa.
b) doentes não devem dormir à noite, necessitam apenas de repouso em ambiente iluminado.
c) o sono de pessoas doentes deve ser diurno, quando há possibilidade de socorro, se necessário.
d) doentes geralmente requerem cuidados de outra pessoa que fica de vigília.
e) a recuperação de pessoas doentes ocorre à noite, logo não devem dormir nesse horário, por isso a luz acesa.

14) “Late o cãozinho do portão.” A estrutura sintática desse período é predicado + sujeito. Assinale a alternativa em que ocorre paralelismo , isto é, essa estrutura se mantém.

a) O guarda-noturno vai subindo a rua.
b) Vai andando o guarda-noturno.
c) Os cães emudecem.
d) O guarda-noturno caminha.
e) A noite é serena.

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GABARITO

1) B

2) E

3) A

4) B

5) C

6) Ocorre uma antítese: emudecer ( equivalendo a calar) e ciciar ( equivalendo a falar)

 7) C

8) D

9) D

10) C

11) C

12) D

13) D

14) B



 

                                                                                     Referência: Leite,Roberto Augusto Soares; Nunes, Amaro Ventura;

                                                                                                                                                       Erman, Rosa- Comunicação Interpretação 5

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