SE EU FOSSE PINTOR... Cecília Meireles

 



   Se eu fosse pintor começaria a delinear este primeiro plano de trepadeiras entrelaçadas, com pequenos jasmins e grandes campânulas roxas, por onde flutua uma borboleta cor de marfim, com um pouco de ouro nas pontas das asas.
           Mas logo depois, entre o primeiro plano e a casa fechada, há pombos de cintilante alvura, e pássaros azuis tão rápidos e certeiros que seria impossível deixar de fixá-los, para dar alegria aos olhos dos que jamais os viram ou verão.
           Mas o quintal da casa abandonada ostenta uma delicada mangueira, ainda com moles folhas cor de bronze sobre a cerrada fronde sombria, uma delicada mangueira repleta de pequenos frutos, de um verde tenro, que se destacam do verde-escuro como se estivessem ali apenas para tornar a árvore um ornamento vivo, entre os muros brancos, os pisos vermelhos, o jogo das escadas e dos telhados em redor
          E que faria eu, pintor, dos inúmeros pardais que pousam nesses muros e nesses telhados, e aí conversam, namoram-se, amam-se, e dizem adeus, cada um com seu destino, entre a floresta e os jardins, o vento e a névoa?
          Mas por trás estão as velhas casas, pequenas e tortas, pintadas de cores vivas, como desenhos infantis, com seus varais carregados de toalhas de mesa, saias floridas, panos vermelhos e amarelos, combinados harmoniosamente pela lavadeira que ali os colocou. Se eu fosse pintor, como poderia perder esse arranjo, tão simples e natural, e ao mesmo tempo de tão admirável efeito?
          Mas, depois disso, aparecem várias fachadas, que se vão sobrepondo umas às outras, dispostas entre palmeiras e arbustos vários, pela encosta do morro. Aparecem mesmo dois ou três castelos, azuis e brancos, e um deles tem até, na ponta da torre, um galo de metal verde. Eu, pintor, como deixaria de pintar tão graciosos motivos?
          Sinto, porém, que tudo isso por onde vão meus olhos, ao subirem do vale à montanha, possui uma riqueza invisível, que a distância abafa e desfaz: por detrás dessas paredes, desses muros, dentro dessas casas pobres e desses castelinhos de brinquedo, há criaturas que falam, discutem, entendem-se e não se entendem, amam, odeiam, desejam, acordam todos os dias com mil perguntas e não sei se chegam à noite com alguma resposta.
         Se eu fosse pintor, gostaria de pintar esse último plano, esse último recesso da paisagem. Mas houve jamais algum pintor que pudesse fixar esse móvel oceano, inquieto, incerto, constantemente variável que é o pensamento humano?

                      

MEIRELES, Cecília. Ilusões do mundo.
Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1976. p. 17-8.


1) O texto tem início com desenvolvimento da observação que a autora tem do ambiente exterior, seguindo para o espaço interior. Essa mudança ocorre em:

a) “Sinto, porém, que tudo isso por onde vão meus olhos, ao subirem do vale à montanha, ...”

b) “Se eu fosse pintor, gostaria de pintar esse último plano, esse último recesso de paisagem.”
c) “acordam todos os dias com mil perguntas e não se chegam à noite com alguma resposta.”
d) “Se eu fosse pintor, como poderia perder esse arranjo, tão simples e natural, e ao mesmo tempo de tão admirável efeito?”
e) “Mas houve jamais algum pintor que pudesse fixar esse móvel oceano, inquieto, incerto, constantemente variável que é o pensamento humano?”

2) Tendo em vista a estrutura textual apresentada, pode-se afirmar acerca de elementos como: variedade de cores e tons, as conversas dos pássaros, as “folhas ainda moles” das mangueiras (...) que

a) remetem o leitor a um saudosismo existencial demonstrando a insatisfação da autora com o momento presente.

b) constituem um vocabulário sensorial cuja função é de grande relevância no processo descritivo que predomina no texto.
c) demonstram o exagero intencional da autora ao retratá-los de forma detalhada, sobrepondo-os em importância ao restante do conteúdo textual.
d)indicam que a finalidade do texto não é apenas descritiva, pois através de uma linguagem metafórica é possível estabelecer vínculos entre os elementos apresentados e indagações existenciais.
e) sinalizam a sensibilidade do eu-lírico em resgatar imagens de um passado que remete a inquisições da essência humana.

3) “Mas logo depois, entre o primeiro plano e a casa fechada...”
    “Mas por trás estão as velhas casas, pequenas e tortas...”
    “Mas, depois disso, aparecem várias fachadas...”

A repetição intencional da conjunção demonstra a observação atenta do eu-lírico na descoberta de novos pontos de interesse. Baseado nessa informação e no contexto textual, assinale o valor semântico da conjunção em destaque:

a) conclusiva

b) alternativa
c) adversativa
d) aditiva
e) explicativa

4) A linguagem do texto é predominante descritiva. Ela coincide com a finalidade do texto?


a) Sim, pois a intenção da autora é descrever um cenário urbano e bucólico simultaneamente.
b) Sim. A autora trata o tema como o retrato paisagístico de sua infância.
c) Não. Depois da parte descritiva, ocorre um trecho analítico, dedicado a indagações existenciais.
d) Não. O texto reveste-se de uma capa descritiva para encobrir a sua natureza narrativa.
e) Não. O tema é a sofreguidão pela finitude humana.

5) Observe os adjetivos em “...pombos de cintilante alvura...”, “...moles folhas cor de bronze...”, “...de um verde tenro...”. Sobre seu emprego no texto, pode-se inferir que:


a) intensificam a melancolia que transpassa o texto.
b) denotam a objetividade intrínseca do texto.
c) promovem a integração entre o descritivo e o narrativo
d) confrontam a realidade descrita com o sentimentalismo do eu-lírico.
e) privilegiam a avaliação subjetiva da autora.

6) Qual dos cinco sentidos foi privilegiado na observação da autora?


a) tato
b) visão
c) audição
d) olfato
e) paladar

7) Se eu fosse pintor... Pelo emprego da conjunção, é possível depreender que no texto serão consideradas:


a) teses
b) premissas
c) hipóteses
d) veracidades
e) fatos

8) Ao final do texto, o eu lírico revela o desejo de pintar “esse último plano”, que é:


a) o móvel oceano
b) castelinhos de brinquedo
c) pensamento humano
d) castelos, azuis e brancos com um galo de metal verde na ponta da torre.
e) criaturas que se amam e se odeiam

9) Como o eu lírico   adjetiva o pensamento humano?


a) anímico
b) inquiridor
c) indeclinável
d) tenro
e) móvel

10) No contexto textual, é correto afirmar que a oração “...que seria impossível deixar de fixá-los, ...” expressa:


a) causa
b) consequência
c) finalidade
d) concessão
e) condição

11) Em “...que a distância abafa e desfaz ...”, a que termo o pronome que se refere?


a) olhos
b) muros
c) paredes
d) riqueza
e) montanha

12) A adjetivação pode ser de ordem subjetiva, assumindo, então, um valor conotativo que lhe garante expressividade. Assinale o item que reflete uma visão subjetiva do eu lírico.


a) trepadeiras entrelaçadas
b) pequenos frutos
c) casa fechada
d) verde tenro
e) saias floridas

13) De acordo com o texto,  a riqueza invisível  refere-se a:


a) galo de metal verde
b) pensamento humano
c) borboleta cor de marfim
d) castelinhos de brinquedo
e) vitalidade dos animais

14) “E que faria eu, pintor, dos inúmeros pardais que pousam nesses muros e nesses telhados, e aí conversam, namoram-se, amam-se, e dizem adeus, cada um com seu destino, entre a floresta e os jardins, o vento e a névoa?” Nesse parágrafo, por meio de sequência de ações, o eu lírico enfatiza o descompromisso amoroso, explicitando um sentimento de:


a) perda
b) rancor
c) ternura
d) liberdade
e) inveja

15) O adjetivo móvel atribuído a oceano justifica-se


a) pela comparação com o movimento do mar
b) pela variedade de tonalidades que o mar apresenta
c) pela simetria no movimento marítimo
d) pela inquietude que o mar provoca nas pessoas.
e) pelo temor que o mar traz consigo

                                                                                       referência: Do texto ao texto, Infante, Ulisses


CLIQUE AQUI para fazer o download


GABARITO

1) A

2) B

3) D

4) C

5) E

6) B

7) C

8) C

9) E

10) B

11) D

12) D

13) B

14) D

15) A

Comentários