PARAÍSO LEMBRADO Lya Luft

 


 

https://br.pinterest.com/pin/781444972816478386/

            

        Não havia ostentação na casa grande. Todo o luxo, o exagero todo ficavam no jardim que se estendia atrás. Gramados de veludo com a sombra das árvores crescendo no fim da tarde; no roseiral, onde aprendi a sensualidade dos perfumes e fazia besouros pretos e amarelos rastejarem na minha mão; a cerca de araçá e outras frutas vagamente proibidas: a mãe queria que a gente só comesse maçã argentina, sem saber da delícia das pitangas, ou das jabuticabas da árvore alta de onde um dia o jardineiro teve de me tirar com escada na mão.
        O balanço, onde eu cantava histórias com letra e música inventadas na hora, certamente ainda balançaria ao peso das minhas memórias, se estivesse ali. Mais adiante, o lago, talvez um pequeno açude brotando incansável de algum olho-d’água submerso, onde pesquei tanto lambari com anzol de alfinete. O puxão, susto e alegria, o risco de prata saltando sobre a água, vitória e compaixão. Mais tarde a avó preparava a fritada com o balde cheio, que eu comia com o pai, cúmplice dessas brincadeiras.
        A casa dessa avó era parte do paraíso: casinhola quase antiga, com avarandado, por onde ainda caminho muitas vezes em sonho. Tudo motivo de felicidade: biscoito feito na hora, refrescos coloridos e sempre as velhas histórias. “Vó, conta a história de quando você caiu da goiabeira e quebrou o braço.” O melhor era imaginá-la criança como a gente, num tempo incalculável. O pomar eram as bergamoteiras escuras, as laranjeiras cheirosas, as espécies que se contavam nos dedos: a do céu, a de umbigo, a tangerina.
        Meu pai plantara o matinho de eucaliptos, quase uma alameda, onde a gente corria entre um cheiro bom que nenhum spray do mundo conseguiria reproduzir. Muitas vezes no fim de tardes quentes o jardineiro queimava um monte dessas folhas, enquanto, deitada no capim morno, eu olhava os bichos, castelos, caretas, que as nuvens formavam no alto.
        Do outro lado da sebe, um terreno meio abandonado, que chamávamos charco ou pântano, não sei. Sei que era a morada dos meus medos e fascinação mais secretos e intensos: à noite, ou nas madrugadas de uma criança insone, roncos, bufidos, gargalhadas, gemidos e cantorias de mil sapos e seres fantásticos me chamavam.
        O mundo naquele tempo, e naquele local, era encantado: cada flor tinha o seu elfo, cada cogumelo o seu não tortinho, cada recanto de folhas a sua divindade. Os morros azuis ao redor eram habitados por Rapunzel e Bela Adormecida, havia ali cavernas com tesouros de Ali Babá.
        Mas era certamente no lago o meu reino. Rodeado de salgueiros, com a labareda de uma corticeira velha, tinha no centro uma ilhota onde se chegava por um pontilhão muito precário. Houve um tempo em que ali morou um casal de veadinhos. Seus focinhos úmidos, os flancos ariscos e ternos olhos faziam parte do meu cotidiano, dentro dos muros de minha vida, quando eu ainda não era cidadã de uma capital, longe do paraíso traído. Um dia, o macho fugiu, e os empregados vaticinaram que a fêmea “morreria de saudade”. Eu a visitava todos os dias, ansiosa, e, realmente, ela se deixou morrer. Foi a primeira vez, talvez única morte por amor que testemunhei, naqueles tempos românticos, em que o coração da gente e as histórias de família, não as novelas de televisão, proviam nosso imaginário.

1) O texto traz uma descrição subjetiva, de modo que a casa e outras partes da fazenda são descritas como são vistas e sentidas pelo eu lírico. Essa afirmação pode ser comprovada pela passagem:

a) ...enquanto, deitada no capim morno, eu olhava os bichos, castelos, caretas, que as nuvens formavam no alto.

b) ... pesquei tanto lambari com anzol de alfinete.
c) Mais tarde a avó preparava a fritada com o balde cheio, que eu comia com o pai, cúmplice dessas brincadeiras.
d) O melhor era imaginá-la criança como a gente, num tempo incalculável.
e) Do outro lado da sebe, um terreno meio abandonado, que chamávamos charco ou pântano, não sei.


2) O item em que a relação entre o sentido da audição  e o excerto do texto está adequada é .

a) Meu pai plantara o matinho de eucaliptos, quase uma alameda, onde a gente corria entre um cheiro bom... -

b)... ou das jabuticabas da árvore alta de onde um dia o jardineiro teve de me tirar com escada na mão
c) Gramados de veludo com a sombra das árvores crescendo no fim da tarde
d) ... à noite, ou nas madrugadas de uma criança insone, roncos, bufidos...
e) A casa dessa avó era parte do paraíso: casinhola quase antiga, com avarandado, por onde ainda caminho muitas vezes em sonho.


3) O  texto faz uma referência à infância do eu lírico. Essa afirmação pode ser confirmada pelo seguinte excerto:

a) O balanço, onde eu cantava histórias com letra e música inventadas na hora,...

b) O melhor era imaginá-la criança como a gente,...
c) O pomar eram as bergamoteiras escuras, as laranjeiras cheirosas, as espécies que se contavam nos dedos: a do céu, a de umbigo, a tangerina.
d) ... fazia besouros pretos e amarelos rastejarem na minha mão;
e) Mais tarde a avó preparava a fritada com o balde cheio, que eu comia com o pai, cúmplice dessas brincadeiras.


4) A morada dos medos do eu lírico era(m):


a) a noite escura.
b) a madrugada.
c) gemidos.
d) o pântano.
e) seres fantásticos.

 

5) No final do texto, o eu lírico faz uma constatação:

a) Assistir a uma morte por amor nas novelas é bem mais fácil, pois sabe-se que é uma encenação.

b) As novelas da televisão têm sempre um cenário campestre.
c) As novelas não conseguem reproduzir fielmente as histórias rurais.
d) As recordações da infância deram lugar ao apelo televisivo.
e) Histórias de família são, atualmente, o cenário televisivo.

 

6) Ilhota é um substantivo diminutivo, pequena ilha . Observe o excerto “Rodeado de salgueiros, com a labareda de uma corticeira velha, tinha no centro uma ilhota onde se chegava por um pontilhão muito precário.”

O item com um par de substantivos empregados no grau diminutivo é:

a) pontilhão - filete

b) labareda - focinho
c) pontilhão - labareda
d) filete- focinho
e) focinho – pontilhão

7)  “... ou nas madrugadas de uma criança insone...” . Assinale o item mais adequado para substituir o adjetivo em destaque sem prejuízo para a coerência textual.

a) que geme

b) sonâmbula
c) com medo
d) com insônia
e) que ronca

 

8) O eu lírico adjetiva o tempo como incalculável porque:

a) é uma contagem que requer habilidades matemáticas que as crianças ainda não desenvolveram.

b) avós sempre escondem a idade.
c) crianças não imaginam que suas avós foram crianças.
d) para as crianças, o tempo não passa.
e) para as crianças, a infância das avós pertence a um tempo muito remoto.

 

9) “Não havia ostentação na casa grande... O balanço, onde eu cantava histórias ... o jardineiro queimava um monte dessas folhas... Mas era certamente no lago o meu reino.”  Esses verbos foram empregados no pretérito imperfeito do indicativo porque:


a) estabelecem uma relação entre o passado e o futuro.

b) referem-se a um fato já ocorrido, transmitindo ideia de um hábito passado.
c) reportam um tempo passado e concluído completamente.
d) sinalizam ações que ocorreram anteriormente a outras.
e) indicam ações posteriores ao momento sobre o qual se fala.

 

10) Em “... talvez um pequeno açude brotando incansável de algum olho-d’água submerso ...” , o vocábulo em destaque tem o valor semântico de:

a) que não se cansa.

b) inconstantemente.
c) como um filete d’água.
d) efêmero.
e) ininterruptamente.

 

11) No excerto “ ... onde aprendi a sensualidade dos perfumes...” o vocábulo em destaque refere-se:

a) ao roseiral.

b) à sombra das árvores.
c) ao gramado.
d) ao jardim.
e) à casa grande.

12) No excerto “... o risco de prata saltando sobre a água”, o vocábulo em destaque foi empregado no sentido de:

a) peixe

b) anzol
c) alfinete
d) pedaço de metal prateado
e) lago

    

VEJA TAMBÉM:



Comentários